A TERRA EM PREÇO DE LIQUIDAÇÃO

Há alguns dias atrás eu postei aqui no blog um comentário sobre uma "descoberta" que fiz de um livro do Ailton Krenak, chamado "Ideias para adiar o fim do mundo". Um livro "leve" na leitura, mas que não deixa de ser profundo no entendimento; um livro "simples" na maneira de expressão do autor mas, ao mesmo tempo, complexo na mensagem que transmite. Talvez seja esse o grande segredo de Krenak, que o tem feito um certo "pop star" em tempos de pandemia; alguém que, com a serenidade dos que aprenderam a contemplar o silêncio da natureza, nos convida a refletir com o pé no chão, a permitir que a nossa humanidade se sobreponha à nossa angústia. Alguém que hesita em fazer planos para o futuro, apenas para conseguir viver o presente com maior inteireza. Quando ele afirma que "temos que parar de vender o amanhã", isso me parece um conselho extremamente sábio, e não porque eu tenha uma interpretação fatalista de que talvez não haja amanhã, mas simplesmente pelo fato de que quando focamos nossa energia no amanhã, o hoje se torna apenas um período de passagem para algo que não chegou, e que efetivamente não vai chegar, porque quando o amanhã vier, nossa expectativa se transfere para depois de amanhã, e assim sucessivamente, ao longo de toda uma vida à espera.

Não quero efetivamente discutir isso do ponto de vista psíquico, porque esse não é um blog de auto-ajuda, mas quero fazer uma reflexão acerca desta questão do ponto de vista do modelo civilizatório que temos adotado. A narrativa do projeto de desenvolvimento adotado pelo capitalismo parece ser apenas uma variação do projeto adotado pela igreja durante a Idade Média, ou seja, não importa o quanto você sofra aqui na Terra, tudo que fizer deve estar voltado à redenção que vai vir depois, quando conquistarmos o paraíso. Passada a Idade Média, os conquistadores nos dizem que não importa o sofrimento a que uma nação tenha que ser submetida, desde que isso seja feito em nome de um desenvolvimento que virá depois. Destruímos o mundo hoje, na esperança de que com isso possamos adquirir as condições para reconstruí-lo amanhã. Do ponto de vista da lógica, isso nos parece um tanto irracional, mas é perfeitamente compatível com os paradoxos inerentes a este modelo civilizatório que construímos. Inventamos a tecnologia para que os trabalhadores tivessem maior tempo livre mas, ao invés disso, usamos a tecnologia para que os trabalhadores possam produzir mais e, com isso, tenham cada vez menos tempo livre.

Essas são algumas das questões que estão presentes neste outro texto do Ailton Krenak que trago hoje para apresentar aqui: "O amanhã não está a venda". É um texto ainda mais curto do que o anterior, mas nem por isso menos impactante. De fato não podemos avaliar uma obra pelo número de caracteres que ela contém, mas pelo número de verdades que ela carrega, e pela capacidade de nos mover de nossas certezas cristalizadas. Assim é mais este obra de Ailton Krenak, um conjunto de reflexões maduras, que colocam em xeque verdades que muitas vezes julgamos como inquestionáveis. Um exemplo disso aconteceu com o enorme desastre provocado pela ganância da Vale do Rio Doce há pouco mais de um ano atrás, no rompimento da barragem de Brumadinho. Na ocasião, a aldeia dos índios Krenak, situada na margem esquerda do rio Doce, foi diretamente afetada por este que foi um dos maiores desastres ambientais de mineração no Brasil. Analisemos a posição de Ailton sobre esta questão: "Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: 'A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que até que ele· voltasse a ter vida'. Então um deles me disse: 'Mas isso é impossível'. O mundo não pode parar. E ele parou".




Essa é uma das tantas verdades "sólidas" do mundo moderno, que se desmancham no ar da pandemia global em que estamos mergulhados. Uma economia que reclamava dos prejuízos gerados por alguns feriados anuais, está agora há três meses inerte, e as pessoas são obrigadas a se reinventar, porque a vida é muito maior do que o emprego perdido. 

Essa mesma lógica poderia, e pode, ser aplicada em muitos contextos da nossa vida cotidiana. Fazer a reforma agrária neste país é impossível ? Históricamente fomos levados a pensar que não, pois isso supostaria desestabilizaria o mais forte setor da economia nacional. É tão impossível quanto fechar o comércio por três meses. Tão impossível quanto deixar 80% da frota aérea mundial no chão por mais de dois meses. E, no final, descobrimos que o impossível se impôs, e aconteceu. Trabalhar menos e consumir menos é possível? Comer de forma mais saudável é possível? Reduzir a ganância humana e garantir a justiça social e ambiental para os povos desse planeta é possível? Não é possível até que seja, até que à semelhança de uma pandemia viral, construamos as condições necessárias para que aconteça, porquê sim, é possível! Os jovens parisienses reunidos em barricadas, em maio de 1968, já haviam nos advertido: "Sejamos razoáveis: peçamos o impossível!"


Se nós permitirmos que todo este sofrimento mundial que estamos passando se encarregue de levar a óbito apenas os seres humanos e os milhares de pequenos e médios empreendimentos que sucumbem à seleção natural do mercado, não teremos aprendido nada com tudo isso. Precisamos que a pandemia leve a óbito este modelo desumano de vida que construímos em busca de um amanhã melhor que jamais chegará para a grande maioria das pessoas deste planeta. Em nome da produtividade e da eficiência, matamos a vida diversa, criativa, lenta, saudável e rica. Como bem nos lembra Krenak, "esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas
de vida, de existência e de hábitos".

A receita do capital para reduzir os custos individuais da produção, é sempre produzir quantidades cada vez maiores de produtos cada vez menos duráveis mas, para isso, é preciso estimular cada vez mais consumo para dar conta de toda esta produção; mas para gerar mais consumo é preciso ter mais dinheiro e crédito, e para fazer com que circule mais dinheiro, precisamos gerar mais empregos, o que significa produzir e vender cada vez mais produtos, e assim o mundo mergulha cada vez mais fundo em um círculo vicioso da economia, onde as pessoas se transformam em um CPF para abrir crediário; um mundo em que a falta de tempo tenta ser sanada com tecnologia e a falta de saúde é compensada quimicamente nas farmácias. Novamente somos arremessados ao chão com o peso de uma verdade exposta por Krenak: "Com o avanço do capitalismo, foram criados os  instrumentos de deixar viver e de fazer morrer: quando o indivíduo para de produzir, passa a ser uma despesa. Ou você produz as condições para se manter vivo ou produz as condições para morrer". Esse é o mundo doente que herdamos, mas não precisa ser o mesmo mundo que deixaremos de herança às futuras gerações. Neste belíssimo texto "O amanhã não está a venda", um grande pensador indígena da realidade brasileira nos convoca a refletir sobre o baixo preço pelo qual estamos vendendo nosso planeta e nosso futuro. Ouçamo-lo!

O livro pode ser baixado no endereço abaixo:



Para aqueles que quiserem conhecer melhor as ideias deste espetacular pensador da realidade contemporânea, vale asssistir ao vídeo abaixo:






Comentários

  1. Precisamos reavaliar o nosso chamado " desenvolvimento humano" a fim de não comprometer mais ainda a nossa geração e as futuras gerações.

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