PINTANDO COM A LUZ

 Certa vez Sebastião Salgado, mineiro da cidade de Aimorés, e um dos mais reconhecidos fotógrafos do século XX e XIX, afirmou que o fotógrafo é o artista que pinta com a luz. Talvez poucas expressões possam definir tão bem a obra deste artista que, desde os anos 70, registra as singularidades do mundo em tons de cinza. Quando mergulhamos na obra de Sebastião Salgado, percebemos  que ele possui uma capacidade única de não somente trabalhar com a luz, composição fotográfica e contrastes, mas também de mostrar ao mundo o que são realidades distantes que não conhecemos, a ponto de sermos capazes de nos emocionar com elas a cada foto. A foto é uma poesia desenhada no papel, transformando a tristeza do mundo em uma estética da resistência, denunciando que a vida esquecida pelos grandes mercados e pela política internacional insiste em reivindicar um espaço no planeta.


Sebastião Salgado é um brasileiro que testemunhou ao longo de sua vida a esperança de um futuro que nunca chegou para bilhões de seres humanos invizibilizados, em todos os continentes. Não só testemunhou como compartilhou com os incrédulos ocidentais de classe média-alta que tem acesso à sua arte, a desesperança de sociedades inteiras desaparacendo sob a fome, a doença, a seca, as guerras, às injustiças e às desigualdades. Formado em economia, profissão que abandonou no exílio para se dedicar à fotografia, Sebastião Salgado é o protótipo de um geógrafo amador, aventureiro, inquieto e inconformado, que usa a retina como critério de interpretação do mundo. 

Fugido do Brasil pela perseguição da ditadura militar, a carreira deste premiadíssimo fotógrafo brasileiro se deu quase toda na Europa, ainda que aquele tenha sido o continente onde Sebastião Salgado talvez menos tenha ficado ao longo dos seus quase cinquenta anos de fotografia. No Brasil, suas obras começaram a ser publicadas apenas a partir de 1996, com seu primeiro livro intitulado "Trabalhadores". Esta obra representa o primeiro projeto de fôlego do fotógrafo, que registra em 350 fotos, com olhar solidário, as condições de trabalho de homens e mulheres cujo ânimo se sobrepõe às condições mais duras de vida. Com fotos do drama da tradicional pesca do atum na Sicília, da obstinação de garimpeiros em Serra Pelada (como na foto abaixo), a paisagem dantesca de uma mina de enxofre na Indonésia, famílias indianas envolvidas na construção de barragens para irrigação, combatentes de incêndios colossais em poços de petróleo no Kwait, o autor nos entrega em imagens espantosas a síntese da miséria humana que nossos telejornais retratam em notícias de dez segundos, misturadas entre coberturas de festas e futebol. 



O segundo livro de Sebastião Salgado, chamado "Terra", foi publicado no Brasil em 1997, a partir de um projeto desenvolvido pelo artista entre 1980 e 1996, após o retorno dele do exílio, com o fim da ditadura militar. Neste momento, o fotógrafo se propôs a conhecer de perto o Brasil que os militares lhe tinham negado, e percorreu milhares de quilômetros para registrar imagens de pessoas de algum modo desterradas: trabalhadores rurais, mendigos urbanos, presos, garimpeiros, crianças de rua - gente vagando entre o sonho e o desespero, como escreve José Saramago no prefácio. Acho que poucas fotos ao longo da vida conseguiram me marcar tanto quanto uma foto publicada neste livro, de uma mercearia no interior do Piauí que, ao lado de frutas e calçados, vendia caixões funerários para crianças (foto abaixo). Talvez tenha sido a primeira vez em minha vida em que percebi que a morte pode, efetivamente, ter percepções muito distintas, dependendo do lugar que você ocupe neste mundo. Mais tarde, ao assistir o filme da história de vida do fotógrafo, descobri algo ainda mais estarrecedor sobre esta foto, que é o fato de que estes caixões também eram alugados por aqueles que não dispunham de recursos para comprá-los, apenas para transportar os mortos até as covas. A miséria se torna tão indigna, que os rituais são apenas imitações daquilo que deveriam ser.


Muitos outros livros de Sebastião Salgado se seguiram, incluindo Outras Américas (1999), Êxodos (2000), África (2007) e Gênesis (2013), um dos últimos livros do fotógrafo e que o coloca em uma linha diametralmente oposta à da desesperança que envolviam muitas de suas obras anteriores. Após se desiludir com a humanidade, ao registrar tanto abandono mundo a fora, Sebastião resolve procurar dentro de si uma semente de esperança para que possamos sonhar com a possibilidade de um futuro diferente. Esta esperança começa com a retomada da propriedade rural da família, onde o artista passou a sua infância, e que o desmatamento e a seca que se seguiram transformaram em mais uma das cenas de desolação a que Sebastião Salgado tanto estava acostumado. Junto com sua esposa, fundaram o Instituto Terra, e passaram a replantar mais de dois milhões de árvores típicas da Mata Atlântica, e a resposta disso, não foi apenas o retono da floresta, da água e dos animais, mas foi o retono da esperança que o fotógrafo tanto precisava para voltar a acreditar na humanidade. Ao longo dos primeiros dez anos do Instituto Terra, a paisagem se transformou profundamente (foto abaixo), o que inspirou o artista para juntar uma coleção de imagens que mostram a natureza, os animais e os povos indígenas com um brilho impressionante.



É como se ele tivesse dado à luz (literalmente) uma obra de vida que venceu a morte, tão registrada por ele ao longo dos anos. Cronologicamente, é o testemunho de que a natureza permanece viva, á espera da sensatez humana. Da Amazônia à Antártica, das selvas do Sudão ao Ártico, passando pelo Saara, Sebastião Salgado registra no "Gênesis" mais do que a natureza original do planeta, ele registra a esperança de possamos continuar a ter um planeta.




Esta magnífica trajetória de um fotógrafo desterrado pelo autoritarismo, que foi ao encontro de outros igualmente perdidos de sua identidade, abandonados à sua própria sorte, um artista que enquadrou a morte e o sofrimento para depois retornar à vida e à origem de tudo, acabou sendo capturada em um filme emocionante, que nos convida não apenas a acompanhar a construção deste caminho de procuras, mas também de compartilhar com o artista a alegria do que encontrou ao final. O filme “O Sal da Terra” documenta não somente a carreira de Sebastião Salgado, mas também a descrição do próprio fotografo sobre as imagens de cada projeto que realizou. O filme é uma co-produção do filho mais velho do fotógrafo, Juliano Ribeiro Salgado, que parece ter usado a produção cinematográfica como um caminho para reencontrar o pai sempre tão ausente durante seu período de infância e adolescência. O silêncio da ausência de uma trilha sonora, parecem dar ao documentário uma força ainda maior, diante de um mundo cinza, que vez por outra se colore para mostrar algumas imagens de família e bastidores de seus projetos. 


É um clássico da fotografia, que retrata a alma do mundo. Quando mergulhamos na obra de Sebastião Salgado, mais nos apaixonamos pela história de nossa civilização; rimos e choramos com as contradições que nos são jogadas diante dos olhos, mas, acima de tudo, somos convidados a estudar, compreender e lutar contra estas contradições, a fim de construir um mundo melhor.



O filme pode ser baixado no seguinte endereço: https://filmescult.net/o-sal-da-terra-2014/






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