TODAS AS FAMÍLIAS FELIZES SE PARECEM

Um dos clássicos da literatura russa do final do século XIX (Anna Karenina), escrito por Leon Tolstói em 1877, inicia com uma célebre frase: "Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo". Extrapolando o contexto da obra, esta afirmação poderia ter se eternizado na análise das sociedades ao longo da história, já que na sociedade moderna capitalista parece haver apenas um caminho para a felicidade (o progresso, o desenvolvimento, a tecnologia, a acumulação de riquezas, a perda de natureza e o abandono de princípios éticos que insistem em nos relembrar da essência do humano). Nesse clube de países felizes, todos se parecem no consumo globalizado, no conforto tecnológico, frequentando shopings muito semelhantes, dirigindo automóveis de design universal ou adotando marcas corporativas que unificam as imagens do mundo. Já os infelizes, são infelizes cada um a seu modo, seja pela pobreza extrema, pelas guerras, pelas doenças, pelos regimes autoritários, pela perda de identidade, pela falta de educação, arte e cultura... 

Essa ideia de que o progresso capitalista representa um longo e contínuo caminho de renúncias e abdicações, ao final do qual todos os que sobreviverem serão recepcionados no seleto grupo das "pessoas felizes", representou uma utopia muito difundida ao longo do século XIX, até a Primeira Guerra Mundial. Depois disso, os efeitos da Guerra, associados à crise da bolsa de Nova Iorque de 1929 e, na sequência, o desastre da ascenção do fascismo na Europa e a deflagração da Segunda grande Guerra, foram desvelando as fantasias do livre mercado, e expondo a nú a face indigesta da exploração burguesa e imperialista, que se alimenta da desigualdade. Passamos a entender com muita clareza de que a felicidade de alguns só é garantida graças à infelicidade de muitos, e que neste sistema desigual, não há e nunca haverá lugar para uma felicidade plena de todos. Pois bem, o livro de ficção que vou comentar hoje, considerado um dos 100 melhores livros do século XX, e transformado em filme em 1980, insere-se exatamente neste contexto emocional do desencanto com a farsa. O livro "Admirável Mundo Novo", publicado em 1932 na Inglaterra (em 1941 no Brasil) pelo escritor britãnico Aldous Huxley, representa um dos mais importantes alertas sobre a confiança cega no progresso tecnológico da civilização humana.



A obra de Husley é uma distopia que antecipa o desenvolvimento da tecnologia reprodutiva, cultivos humanos e hipnopedia (memorização de informações durante o sono), manejo das emoções por meio de drogas (no livro chamada de "soma", a droga da felicidade) que, combinadas, mudam radicalmente o comportamento da sociedade. O mundo descrito pelo autor é uma refinada ironia contra a ideia de progresso: a humanidade é organizada em castas onde cada um sabe e aceita seu lugar na engrenagem social, saudável, avançada tecnologicamente e sexualmente livre. A guerra e a pobreza foram erradicadas neste romance que se passa na Londres do ano 2540 ou, como nos apresenta o autor, no "ano 600 da Era Fordiana”, uma alusão satírica a Henry Ford, pioneiro norte-americano da indústria automobilística e inventor de um método de organização de trabalho para a fabricação em série e padronização de peças. Tal método, conhecido como “fordismo”, transformou os trabalhadores em algo inferior a autômatos, robôs que repetiam, ao longo da jornada de trabalho, um único gesto. Nesta sociedade utópica, todos são permanentemente felizes, ao menos aparentemente. O paradoxo é que esta felicidade foi alcançada após a sociedade eliminar muitas coisas que hoje nos fornecem o sentido de humanidade: a família, a diversidade cultural, a arte, a pesquisa científica, a literatura, a religião, a filosofía e o amor. 

O livro começa com um grupo de estudantes que visitam a central de condicionamento de Londres, onde um cientista lhes mostra a técnica da reprodução artificial. Por meio dela, os estudantes compreendem que a organização da sociedade é determinada desde o nascimento. O Estado mundial manipula a reprodução para garantir pessoas perfeitamente adaptadas a sua posição social, designados com as letras do alfabeto grego, desde os Alfas, destinados aos cargos de direção, até os Ipsilones, desenhados para as tarefas mais perigosas e repetitivas. Este planejamento genético se complementa mediante o condicionamento por meio da hipnopedia, o ensino durante o sono, que cumpriria o papel de incutir  as ideias na cabeça das pessoas enquanto elas dormem. Esta técnica é qualificada por um dos personagem do livro como “a maior força socializante e moralizante de todos os tempos”.

O enredo todo da obra se desenrola no conflito entre a "perfeição" do mundo civilizado, quimicamente tornado feliz, e os valores presentes nos "selvagens", cidadãos que vivem à margem do mundo civilizado, em Reservas especiais onde ficam separados. De uma destas Reservas sai o protagonista principal da obra, John, o selvagem. Ele é filho de dois cidadãos do mundo civilizado que, por um erro acidental do método contraceptivo (já que os nascimentos haviam sido abolidos), acabou vindo ao mundo exatamente em um momento em que sua mãe estava visitando uma destas Reservas e, perdida e separada de seu marido, acabou dando a luz ali mesmo.  A grande riqueza da obra provêm justamente do choque cultural gerado quando o "selvagem" é levado para a feliz sociedade "civilizada". 

Uma questão central para a obra de Huxley é exatamento o conflito moral que se estabelece em nome da felicidade. Para garantir a felicidade contínua e universal, a sociedade "civilizada" deve ser manipulada, a liberdade de escolha e expressão deve ser reduzida e o exercício intelectual e a expressão emocional devem ser inibidos. Os cidadãos são felizes, mas John, o Selvagem, considera essa felicidade artificial e "sem alma". Em uma cena genial do livro, ele discute com o controlador mundial da Europa Ocidental, Mustafá Mond, sobre o fato de que a dor e a angústia são uma parte tão necessária da vida quanto a alegria, e que sem elas, colocando em perspectiva, a alegria perde todo o significado.

Mas qual o sentido de falarmos desta obra de ficção em um blog que se propõe a refletir sobre as conexões e desconexões existentes entre a sociedade e a natureza? Todo o sentido! A obra de Huxley assume uma atualidade estrondosa em uma sociedade que parece hipnotizada pela artificialidade tecnológica, sem perceber o nível de controle, domínio e ansiedade que se escondem por trás deste mundo hiperconectado. Oito décadas depois de ser lançado no Brasil, esta obra escrita em um período em que sequer a televisão havia sido inventada, continua gritando aos nossos ouvidos  que as sociedades de controle não se apoiam apenas na repressão, mas também na tecnologia e no culto ao “progresso”.

Aldous Huxley escreveu esta obra como uma visão pessimista do futuro e uma crítica feroz do culto positivista à ciência do progresso, num momento em que as consequências sociais da grande crise de 1929 demonstravam nas ruas as nefastas consequências de um modelo baseado na acumulação desigual e  na meritocracia. Diante da irrefutável prova de que o progresso não é para todos, se dissipa a crença no progresso e nos regimes democráticos, abrindo espaços cada vez maiores para governos autoritários, ancorados em argumentos ilusórios de uma "pós-verdade". É a visão alucinada de uma humanidade desumanizada pelo condicionamento comportamentalista, e pelo prazer ao alcance de uma pílula (o “soma”). Mais uma vez a vida imita a arte; um estudo divulgado em 2013, demonstra que 47% dos brasileiros usam ansiolíticos juntamente com antidepressivos. A situação é tão grave, que 45% dos entrevistados disseram se sentir mais seguros se tiverem o remédio à mão, e uma parte significativa deles afirmou ficar nervosa com sua falta. Não bastasse este difícil quadro da busca de uma felicidade química, um quarto dos usuários aumenta suas doses para manter a sua eficácia. É neste contexto de perda de protagonismo e de iniciativa de boa parte de uma sociedade consumida pelo consumo que se alastra o medo e o controle. Nossas câmeras prometem nos proteger dos assaltos, nossos celulares prometem controlar a movimentação social em tempos de isolamento, nossas redes sociais nos monitoram naquilo que comemos, vestimos ou pensamos, e todos são "atropelados" pela onda do tecnicismo, a ponto de sermos envolvidos pela angústia de não saber se o medo maior é mergulhar neste mundo, ou ficar de fora dele.

Admirável Mundo Novo é, acima de tudo, uma dos mais belos manifestos humanistas, um grito de liberdade diante de uma sociedade artificial que, ao conquistar todos os seus desejos materiais, suprimindo os valores fundamentais da razão e do sentimento humano, perde completamente a razão de existir. Quanto mais avançamos na técnica, mais nos distanciamos da natureza, nosso berço civilizatório que garante nossa vida. A busca do sofisticado e do exótico nos distanciam do simples e do coloquial, mas pagamos por isso com o nosso corpo, nossa alegria e nossa saúde. Vale a pena lermos a obra (http://www.forum.fequimfar.org.br/Anexos/admiravel_mundo_novo.pdf) ou assistirmos o filme (https://www.youtube.com/watch?v=4_xVCpFVexE&t=6760s) para refletirmos que Mundo Novo é esse para o qual nos carrega o ultraliberismo de mercado, as grandes mídias e as redes sociais. Quando formos capazes de pensar a sério sobre isso, talvez tenhamos o ímpeto de nos tornarmos os "selvagens" de Huxley.

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