Quem pariu o negacionismo?
 

Um artigo do filósofo espanhol Daniel Innerarity, publicado no El País de abril de 2021, sob o título “Arrogantes e crédulos”, apresenta uma contribuição extremamente interessante para refletirmos sobre esta sombra negacionista que parece ter se instalado muito recentemente não apenas na sociedade brasileira, senão também na sociedade mundial.

Quando nos deparamos com afirmações absurdamente falsas que circulam em grupos de whatzapp, como “Vacina contra Covid-19 altera o DNA humano”, “Vacina contra Covid-19 pode inserir um microchip no corpo do vacinado”, “Termômetros infravermelhos causam doenças cerebrais”, é inevitável nos perguntarmos se isso decorre da estupidez humana ou apenas de uma tentativa deliberada de construir um espaço cultural conspiratório onde se possa manejar a vontade  política dos “crédulos”. Se a única resposta correta fosse a primeira (e é isso o que é vendido nos meios de comunicação de massa), seria relativamente fácil combater a ignorância com o conhecimento. No entanto, quanto mais se busca disseminar o conhecimento, parece que isso funciona como um fertilizante para a explosão de fake news de todos os matizes e direções, e isso, definitivamente, acende um sinal de alerta para que nos debrucemos sobre a segunda opção de resposta.  

 


Negar a objetividade dos fatos certamente não é uma atitude inusitada na nossa história; que o digam os 31 mortos da revolta da vacina no Rio de Janeiro em 1904, onde a população era incitada a preservar o próprio corpo (nem que fosse à bala) e não aceitar aquele “líquido desconhecido”. Como essa resistência sempre foi atribuída à ignorância (na época, o Brasil contava com, aproximadamente, 75% de analfabetos), poucos foram capazes de compreender o alcance da rebeldia popular contra o autoritarismo científico de Oswaldo Cruz. Todavia, hoje, com esta nova geração de um negacionismo repaginado, em um período de absoluta facilidade de acesso à informação (ainda que o analfabetismo se mantenha em pouco mais de 6% da população brasileira), talvez valha a pena explorar outras possibilidades de interpretação.

Em uma dessas possibilidades, Innerarity nos lembra dos riscos de convocarmos a ciência para resolver os conflitos sociais que deveriam ser resolvidos pela política. E essa é uma armadilha para a qual nós cientistas somos facilmente atraídos. Fazer ciência é uma escolha difícil, especialmente em países de uma cultura neocolonial, em que obras superfaturadas e mal feitas são muito mais rentáveis (política e economicamente falando) do que investir em produção de conhecimento. A ciência se torna um caminho mal remunerado, por vezes mal compreendido, repleto de dificuldades burocráticas e de financiamento; e, até certo ponto, um caminho frustrante para o enfrentamento das questões imediatas e cotidianas da sociedade, já que produzir conhecimento exige um investimento financeiro, intelectual e de tempo de pesquisa, que facilmente soa como desnecessário a um país com tantas e tão pronunciadas carências.

Por isso, quando os cientistas são convocados a se pronunciar sobre uma situação tão grave quanto a que enfrentamos nesta pandemia, parece inevitável que o bom senso declare a democracia da política em suspenso e queira tomar a palavra da ciência como a única verdade que deveria se impor sobre a realidade da vida. Cientistas se revezam em entrevistas, como astros televisivos inchados de uma egolatria que parece finalmente justificar os motivos pelos quais escolhemos a ciência para nossas vidas. Por óbvio, não podemos agir à margem do conhecimento, mas a questão não é essa; a questão é que a ação é um ato eminentemente político, e, ainda que deva estar baseada no conhecimento, não pode ser substituída por ele, pois é tão nociva a politização da ciência quanto a cientifização da política. Que o digam os médicos que na década de 70 aceitavam fazer propaganda de cigarro, ou os dentistas que alugam seu CRO para vender pasta de dente.



Usar a legitimidade do conhecimento para tentar contornar o conflito político resulta, na maior parte das vezes, na perda de legitimidade da própria ciência, pois a autoridade da verdade se transforma em um autoritarismo do pensamento único, que acaba sendo combatido com o fortalecimento dialético da mentira e da enganação por parte daqueles que, em oposição, disputam o espaço da consciência social.

Nem sempre a melhor política decorre do maior conhecimento, pois se assim o fosse, decretaríamos o fim da política e a gestão da vida pelos especialistas que nos levariam à felicidade plena, como na Nova Atlântida de Francis Bacon, publicada em 1626. Ainda que a ciência tenha a obrigação de dar suporte à boa política, ela não a substitui, pois a política é o espaço do diálogo e da disputa de projetos. Ao colocarmos a ciência no lugar da política, deixamos de debater o projeto de sociedade que defendemos, para debater qual teoria tem maior validade estatística. O convencimento da decisão “correta” é dada a partir dos indicadores de eficiência e eficácia, cuja comprovação passa por complexos procedimentos próprios do metiê acadêmico. Neste sentido, defende o filósofo espanhol, a rebelião dos negacionistas pode ser entendida como uma reação contra a colonização da política pelos especialistas. E quanto mais avançarmos, tomando as evidências científicas como escudo para a imposição de uma política que se torna “indiscutível” diante dos fatos, mais crescerão as fantasiosas teorias conspiratórias que disputam o poder.

Portanto, nada há de estranho nesta conjuntura medieval em que parece ter mergulhado a política brasileira. Quando a política de esquerda deixa de debater o seu projeto de sociedade e opta por enfrentar o negacionismo tão somente com a ciência, a resposta parece óbvia em termos da brutal redução de financiamento para ciência e tecnologia no país. Substituir o debate político pela evidência científica, por mais sensato que possa parecer àqueles que costumam usar a razão como instrumento do seu fazer quotidiano, pode ser uma tremenda armadilha para fomentar a anti-ciência e o negacionismo em uma sociedade cada vez mais polarizada.

Ainda que nossa consciência de pensadores se encha de orgulho quando assistimos aos nossos cientistas superstars desmontando a irracionalidade negacionista com a lucidez dos hermeneutas, é preciso reconhecer que isso não transforma a realidade. É uma péssima metáfora lembrar que a escuridão se combate com a luz, pois não se trata aqui de resolver um problema físico.  É preciso, antes de mais nada, resgatar o debate político como um elemento central da vida em sociedade, e recolocar o projeto de sociedade como o elemento central da política. Só assim, talvez, os cientistas possam sair da televisão e voltar para dentro dos laboratórios, onde eles são muito mais úteis à sociedade do que como juízes da verdade. E, neste caso, é possível que a política entenda que o conhecimento é parte essencial para a tomada de decisões, mas não se confunde com ela.

Assumir que a racionalidade científica, ao ser usada como substituta da política, tem parte na responsabilidade pelo crescimento do negacionismo, é um passo decisivo para combatê-lo e recolocá-lo no passado de onde jamais deveria ter saído.

 

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