QUANDO O MENOS SE TORNA MAIS

Nestas últimas semanas tenho aqui feito comentários sobre livros extremamente interessantes para compreendermos a complexidade da relação sociedade-natureza no momento em que vivemos. Ainda assim, são livros densos, que exigem do leitor uma atenção demorada, uma reflexão lenta, um esforço intenso para conectar dimensões. Não poderia ser muito diferente disso, pois neste mundo caótico que ameaça a sobrevivência humana, a busca de atalhos e sínteses ligeiras, pode ser a pior das armaldilhas.

No entanto hoje, ao contrário das obras que tenho comentado, vou apresentar uma feliz descoberta, que recebi como presente de uma querida amiga. Trata-se do livro escrito por Ailton Krenak, um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas no Brasil. Indígena da etnia crenaque, do vale do rio Doce, Ailton participou da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Brasileira de 1988 e é doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora. Seu livro, "Ideias para adiar o fim do mundo", é uma obra "leve", mas nem por isso menos profunda. 



Desapegado dos rituais acadêmicos da escrita erudita e cheia de referências, a obra de Krenak é um passeio pela intimidade humana. Quando devoramos as 82 páginas do texto gerado pela compilação de duas palestras suas, na UNB e em Portugal, temos a nítida e aconchegante impressão de estarmos naquelas conversas ao pé do fogo com um sábio que amavelmente nos ajuda a enxergar o óbvio, para o qual nossa mente não foi preparada. Ele assim define a essência do seu livro:

"Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim".

Mas a tranquilidade e a sabedoria de Ailton Krenak não diminui em nada sua força e disposição para a luta. Ficou conhecido durante o processo constituinte quando protagonizou uma das cenas mais marcantes daquele processo: em discurso na tribuna, pintou o rosto com a tinta preta extraída do jenipapo, segundo o tradicional costume indígena brasileiro, para protestar contra o que considerava um retrocesso na luta pelos direitos dos índios brasileiros. A advertência do jornalista, escritor e ativista ambiental, pode ser entendida por qualquer um: "A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo".

Quando passamos a tratar a natureza como um recurso, uma mercadoria com preço e sem valor, e decidimos que a montanha, o rio, os animais e tudo que nos cerca é inferior aos seres humanos simplesmente por não falar a nossa língua, não demonstrar as emoções da mesma forma e não responder aos nossos ataques do mesmo jeito, nós nos divorciamos da base da vida, nós abdicamos de compreender  as complexas integrações e interações que ao longo de um tempo profundo nos permitiram evoluir como seres humanos. Nós secamos as nossas raízes e nos expomos voluntariamente à morte da civilização. É possível, aliás, é muito provável, que uma certa quantidade de indivíduos da espécie Sapiens consiga sobreviver ao colapso ambiental para o qual temos nos encaminhado de forma acelerada; a questão não é se, e quantos vão sobreviver. A questão é que a sobrevivência destes indivíduos lhes cobrará um preço tão alto em termos da capacidade de continuar sendo humano, que é mais provável que nós sejamos obrigados a reconhecer o fim da experiência civilizatória neste planeta. 

Ailton Krenak nos instiga a pensar de uma forma diversa, nos coloca no compromisso ético de reconhecer que existem múltiplas formas de viver e ser feliz, e que a receita de sucesso proposta pela cultura hegemônica, branca, machista, ocidental e urbana, é uma grande ilusão, que tem arrastado a todos para o desastre. “Essa chamada humanidade, na verdade, constitui um grupo seleto que exclui uma variedade de sub-humanidades, caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, que vivem agarradas à terra, aos seus lugares de origem, que são coletivos vinculados à sua memória ancestral e identidade. Esse grupo exclui também 70% das populações arrancadas do campo e das florestas, que estão nas favelas e periferias, alienadas do mínimo exercício do ser, sem referências que sustentam a sua identidade. São lançadas nesse liquidificador chamado humanidade”.

Em entrevistas recentes, o autor tem afirmado que esta pandemia mundial que estamos vivendo corresponde a um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, e que precisamos urgentemente repensar o sentido da humanidade; por traduzirmos conforto e consumo  como sinônimos de liberdade, perdemos completamente a noção de que o preço a ser pago por todos pelo consumo de alguns é demasiadamente alto. A capacidade de consumo liquefez o conceito de cidadania; não há mais a garantia das condições mínimas de estar no mundo, do direito de sentir a fruição da existência simplesmente por termos nascido. O que há agora é um "passaporte" para a existência e a felicidade, mas que só pode ser adquirido mediante moeda, moeda essa que é ganha mediante a venda de nossa saúde física e mental. Vendemos a alegria na mesma banca onde esperamos comprar a felicidade, e essa é uma das maiores e insolúveis ilusões já inventadas pela humanidade. 

A leitura de "Ideias para adiar o fim do mundo" pode ser um belo começo para evitar o fim!


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog