O MUNDO PRECISA DE MAIS GEOGRAFIA!

Hoje, às vésperas de comemorarmos o dia do Geógrafo (29 de maio), resolvi compartilhar aqui a análise de um livro que, embora não tenha sido escrito por um geógrafo, e nem a eles seja dedicado, é uma demonstração pedagógica de que o mundo precisa empreender cada vez mais um pensamento geográfico, sob pena de ampliarmos ainda mais o sofrimento humano diante das incertezas do Antropoceno. Quando falo de pensamento geográfico, estou me referindo não necessariamente à produção de uma ciência específica, mas a uma forma de pensamento complexo que interpreta as múltiplas conexões entre a sociedade e a natureza no contexto das espacialidades terrestres produzidas.

Quero apresentar hoje um livro chamado "Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic" (Transbordamento: Infecções animais e a próxima pandemia humana), publicado em 2012 pelo escritor norte-americano David Quammen. Este livro vai na mesma linha de um outro já discutido aqui a alguns dias atrás, intitulado "Big Farms Make Big Flu" (Grandes Fazendas Produzem Grandes Gripes), escrito pelo biogeógrafo norte-americano Rob Wallace. No caso da obra de Quammem, um reconhecido escritor de divulgação científica nos Estados Unidos, há uma visão mais geral sobre as relações que envolvem as atividades humanas que desequilibram os mecanismos de auto-regulação dos sistemas ecológicos e, com isso, detonam os gatilhos responsáveis pela ampla disseminação de microorganismos para fora dos seus territórios originais. O livro vai discutir, especialmente, aqueles processos pandêmicos (como o que estamos vivendo atualmente, com 349.095 mortes confirmadas pela OMS até 27/05) gerados pelo salto interespecífico de patógenos, ou seja, a passagem de microorganismos causadores de doenças, de uma espécie para outra (o "spillover"); neste caso, dos animais para os seres humanos. Já na apresentação do livro (em 2012, lembremos), o autor lançava uma afirmação que hoje poderia ser vista como profética: “A próxima grande e assassina pandemia humana ... será causada por uma nova doença - de qualquer maneira nova para os humanos. O bug responsável será estranho, desconhecido, mas não virá do espaço sideral. As probabilidades são de que o patógeno assassino - provavelmente um vírus - se espalhe para os humanos a partir de um animal não humano. ” A afirmação só não é profética em relação ao aparecimento do Coronavírus em 2019 porque, como acabamos aprendendo no livro, ela se limita a apresentar uma questão que todos os pesquisadores da área sempre tiveram (e continuam tendo) como provável: os seres humanos desequilibram o meio, e o meio transmite esses desequilíbrios à sociedade como ação reflexa.



O livro de Quammem é uma obra realmente extraordinária. O autor construiu uma história de incrível complexidade; uma história de detetive  que persegue assassinos não humanos - vírus, bactérias e organismos unicelulares que infectam outros animais mas que, de vez em quando, transbordam dos seus hospedeiros para nossa própria espécie. O capítulo de abertura do livro já trata de um caso que nós, brasileiros, observamos de longe pela televisão, mas que já foi o suficiente para colocar a todos em alerta: o surto de Ebola, no Congo, em 1998, com uma letalidade na casa dos 71%. A história impressionante vai se desenronlando com gorilas mortos na floresta, consumo de carne apodrecida e feitiçarias, mas o objetivo de Quammem não é o de apresentar os aspectos sensacionalistas do processo, mas sim o de desmistificar esses surtos de doença, descobrir o que sabemos sobre eles e como isso pode nos ajudar a antecipar futuras doenças emergentes e limitar seu impacto.

Em cada capítulo, um patógeno diferente é abordado, desde os rumores iniciais, passando pelo aparecimento de mortes misteriosas e aparentemente desconectadas, até que o surto infeccioso seja realmente revelado. No processo, aprendemos as inúmeras maneiras pelas quais um germe pode se mover de um hospedeiro para outro - através de excrementos, excreções, muco e sangue - e descobrimos as atividades "perigosas" que podem ter levado à exposição: subir em árvores? tocar ou comer animais mortos? beber seiva de tamareira? Tudo isso, sem esquecer o papel crucial desempenhado pelos hospedeiros destes microorganismos: porcos, aves, macacos, e morcegos, considerados verdadeiros "cavalos de Tróia" em meio ao consumo de carnes exóticas, rituais de iniciação e feitiçarias.

Quammen nos convida para uma jornada global, visitando laboratórios organizados, mas também entrando em campo com pesquisadores - aprisionando morcegos na China e macacos em Bangladesh, viajando profundamente na floresta de Camarões para ouvir histórias de cerimônias de iniciação que exigem carne de animais selvagens na forma de braços de chimpanzé .

O surgimento de doenças zoonóticas - essas doenças cujos causadores saltam de outras espécies para nós humanos - não é um fenômeno novo, mas elas parecem estar aumentando, e Quammen explora as razões por trás disso no capítulo final do livro, a partir de uma análise essencialmente geográfica: uma enorme população humana global, um enorme população global de animais domesticados e criados em alta densidade de contato, destruição de habitats naturais e de ecossistemas. Tudo isso, que poderia facilmente receber uma interpretação religiosa por parte dos mais desavisados, como uma  "vingança" da natureza sobre a humanidade, é abordado pelo autor como o resultado lógico de escolhas políticas e econômicas que não levam em conta o equilíbrio das relações. Quammen aponta para uma questão que é tão óbvia quanto difícil de ser solucionada: "os humanos precisam compreender que fazem parte do mundo natural, e que não estão separados dele".

E é exatamente esse o ponto que corrobora com o título desta postagem, pois se a capacidade integrativa de compreendermos o mundo (a visão geográfica) fosse mais amplamente disseminada, é muito provável que tivéssemos a disposição ferramentas teóricas e metodológicas mais robustas para não cometer tantos equívocos na forma de interagirmos com o restante da natureza. Erramos porque nossa sociedade é devota do pensamento único, da "monocultura", da negação da complexidade. Se queremos produzir mais para lucrar mais, direcionamos toda a nossa força e energia para isso, independente das consequências que isso possa trazer a todos os seres que não estão diretamente envolvidos no lucro da operação. Colocamos florestas no chão, drenamos pântanos, barramos rios, modificamos canais naturais, exploramos água e minerais do sub-solo, modificamos a atmosfera, caçamos, aprisionamos, alteramos a genética...enfim, somos os únicos responsáveis por aquilo que sofremos; e a Geografia, para o bem ou para o mal, nos fornece os instrumentos interpretativos para compreender esse processo; sem isso, a medicina mais desenvolvida continuará uma corrida insana até o fim dos dias atrás de vacinas e remédios para as doenças que nós só iremos ampliar cada vez mais. Sem a visão geográfica, talvez jamais nos d´ssemos conta de que as doenças que investem contra a sociedade, são apenas uma resposta termodinâmica às doenças que já existem dentro da sociedade: a desigualdade, o egoismo e a injustiça.

Transcrevo abaixo uma entrevista que David Quammem concedeu a Abdul-Kareem Ahmed, publicada no Yale Journal of Biology and Medicine (YJBM), e que nos ajuda a compreender um pouco melhor as conclusões do livro:


Abdul-Kareem Ahmed: O que o levou a abordar o assunto das doenças zoonóticas? Sempre foi um sonho, ou algo desencadeou essa aventura de 6 anos?

David Quammen: Faz 12 anos que comecei a pensar nisso. Eu tinha lido um pouco sobre o Ebola e fiquei fascinado por ele, apenas por sua tristeza e drama, como muitas pessoas.

Eu estava sentado em uma fogueira na África Central no meio de uma floresta com dois caras locais. Isso foi em julho de 2000. Eu fazia parte de uma caminhada no Congo e esses caras faziam parte da equipe florestal.

Eles começaram a me contar a história de quando o Ebola atingiu sua aldeia e estava matando seus amigos e entes queridos. As pessoas não sabiam na época que era um vírus. Um desses companheiros me mencionou que, ao mesmo tempo, nas proximidades da floresta, ele e seu amigo haviam visto uma pilha de 13 gorilas mortos. Ele não colocou isso em contexto, apenas mencionou. Mas eu sabia sobre a vila dele pela literatura médica. Eu sabia que o surto de (Ebola) havia sido trazido para lá na carcaça de um chimpanzé encontrado morto na floresta. Eu sabia que gorilas, assim como chimpanzés e humanos, são suscetíveis ao Ebola.

Então, quando ele mencionou por experiência própria que havia testemunhado 13 gorilas mortos nas proximidades da floresta, e isso me permitiu conectar estas diferenets partes. Conectava humanos com outros macacos e com esse vírus.

Foi quando eu decidi que queria escrever um livro sobre isso. Eu geralmente escrevi sobre ecologia e biologia evolutiva. Não tenho treinamento e pouca experiência em escrever sobre biologia molecular ou microbiologia ou biologia celular. Era um terreno novo para mim. A parte com a qual me senti à vontade e com a qual me interessei mais foi a ecologia e a biologia evolutiva das doenças infecciosas, em particular dos vírus emergentes.

AA: Ao longo do livro, você conta em primeira mão essas doenças. Você realmente vai a esses locais. Você não estava preocupado com sua segurança?

DQ: Quanto mais eu aprendia sobre esse assunto e sobre essas doenças, mais meus medos irracionais se transformavam em preocupações racionais. Geralmente, eu estava entrando com cientistas muito experientes em quem confiava bastante. Esses especialistas eram da EcoHealth Alliance, da Wildlife Conservation Society e de várias universidades.

Confiei neles e sabia que eles não estavam dispostos a correr riscos desnecessários. Então eu fiz o que eles fizeram. Se eles usavam máscaras e óculos de respiração e duas camadas de luvas e botas de borracha, então eu usava o mesmo. Eu fiquei sempre a quatro pés atrás deles. Fiquei fora do caminho das agulhas e das amostras de sangue e esperava que eles não me entregassem um grande morcego arranhando, que poderia estar portando algum vírus letal.

AA: Como escritor, como você se sentiu ao estar entre algumas poucas pessoas que estavam realmente analisando essas doenças? Você sentiu que estava atrapalhando ou estava facilitando os esforços deles?

DQ: Eu me senti muito privilegiado e emocionado por estar lá com esses cientistas fazendo este trabalho. Eu sabia que era muito importante para mim não atrapalhá-los, porque o trabalho deles é muito sério e exigente e também um tanto perigoso. Eu não achava que poderia ser de grande ajuda para eles, embora às vezes eles me disessem: "Aqui está uma tarefa para você, você limpa a boca do morcego ... e depois aparafusa as garrafas". Fiquei feliz por poder sentir que estava participando.

AA: Temos uma idéia do que você fez para escrever "Spillover", mas há a questão do porquê. Você coloca essa pergunta no livro. Não é errado chamar a atenção para algumas doenças cientificamente intrigantes, algumas delas novas, mas de impacto relativamente pequeno, enquanto as doenças antigas e chatas continuam a punir a humanidade?

DQ: É uma pergunta importante. Alguém que escreveu uma resenha recente de um livro estava gentilmente me encarregando de me concentrar nela. Você pode até chamar estas doenças de doenças de "boutique", doenças que não afetaram ou mataram muitas pessoas.

Antes de tudo, é muito importante entender as doenças zoonóticas e os seus princípios, porque além desses surtos de “boutique” que apenas causam miséria ou morte a algumas dezenas ou centenas de pessoas, temos outras zoonoses que matam milhões. AIDS e influenzas são doenças zoonóticas resultantes de transbordamentos. Essas doenças não podem ser bem compreendidas até que os princípios de transbordamento zoonótico sejam entendidos.

Em segundo lugar, grande parte do meu livro é dedicada a essas grandes epidemias, como o HIV, que matou 30 milhões de pessoas. Se alguém disser: "Bem, por que prestar atenção a algo como a SARS que matou apenas 800 pessoas", uma das respostas é: Os princípios que aprendemos com ela são muito importantes. Além disso, poderia ter sido a próxima AIDS. Estamos procurando a próxima AIDS, e a próxima AIDS começará como um pequeno vazamento zoonótico. Portanto, devemos analisar todos os efeitos zoonóticos, porque queremos identificar a próxima AIDS antes que 15 milhões de pessoas sejam infectadas e estejam condenadas.

AA: Isso levanta uma questão importante. A humanidade é um alvo sem esperança da "Próxima Grande", a próxima pandemia zoonótica? Em todas as interações que temos entre si e os animais e, é claro, os micróbios, sobrevivemos todos os dias simplesmente por causa da sorte do tolo, ou existe um método que podemos atribuir a essa loucura?

DQ: A humanidade inevitavelmente se tornará vítima de outras dessas repercussões. Vivemos em densidades tão altas e causamos tantas perturbações em diversos ecossistemas que continuaremos a entrar em contato com novos vírus. Existem tantos vírus por aí que é inevitável que uma pequena fração deles seja capaz de se espalhar para os seres humanos, se replicar e causar doenças graves que podem ser transmissíveis entre humanos. O que podemos afetar é o quão ruins são os resultados daquelas contaminações inevitáveis. Se essas repercussões se transformam em epidemias e pandemias são fatos contingentes que podemos influenciar.

Normalmente, meus livros não têm muita esperança. Este livro é um pouco mais esperançoso do que as pessoas esperam, porque há vozes de especialistas que estão me dizendo: "Bem, isso depende". É possível que a inteligência e a adaptabilidade dos seres humanos atenuem a severidade do próximo grande problema? Eu penso nisso como uma espécie de corrida entre dois fatores. Por um lado, há a inevitabilidade de outras repercussões zoonóticas, muitas das quais podem ser extremamente assassinas. Por outro lado, existem os avanços científicos que estamos fazendo em saúde pública e os avanços em vigilância e resposta. É uma corrida entre esses dois fatores, sobre quão ruim será a "Próxima Grande.

AA: Uma das respostas que você levantou dizia respeito à capacidade de Cingapura de conter seu surto de SARS. Notavelmente, foi a mão forte do governo e das autoridades médicas que lhes permitiram acabar com a doença. Eles implementaram medidas pesadas, como pena de prisão e multas por infratores de quarentena para conseguir isso. Como americanos, podemos considerar tais medidas como uma invasão à nossa liberdade. Como você pensa sobre o papel da autoridade em situações de emergência? Quanta influência os jalecos e ternos devem ter quando ocorre um surto?

DQ: A questão das liberdades civis que entram em conflito com as medidas de resposta a doenças é uma questão muito séria e complicada na qual precisamos começar a pensar. Não vou dizer: "Aqui está a resposta". Eu gostaria de ver a conversa começar, ver as pessoas começarem a pensar sobre isso, ver as pessoas se familiarizarem com o que aconteceu no caso da SARS e quais são os prós e os contras.

Cingapura conteve seu surto de SARS, assim como Pequim, Toronto e Hong Kong, outras três cidades que possuem fortes sistemas de comando e controle e muito bons sistemas de saúde pública. Se a SARS tivesse saído do Congo e chegado a Kinshasa, os resultados poderiam ter sido muito diferentes. Não quero ser leviano com a República Democrática do Congo. É um país pelo qual sinto grande simpatia. Mas você não tem nada parecido com a situação que você tem em Cingapura em termos da capacidade de controlar um surto viral.

Antes de 12 anos atrás, qualquer pessoa podia entrar em um avião em qualquer lugar do mundo carregando um canivete. Agora é impensável que você pegue um avião carregando uma faca de bolso. Mas você ainda pode pegar um avião carregando um vírus. Eu já vi alguns casos durante surtos graves de gripe quando estava voando. Estávamos andando por câmeras de infravermelho e câmeras que diziam às autoridades se algum de nós estava com temperatura elevada. Outras pessoas me disseram que não é tão difícil rastrear as pessoas quanto à febre ou a um vírus específico. No tempo em que passarmos pela segurança do aeroporto, eles poderão adicionar uma etapa a mais. Eles poderiam pegar um cotonete de dentro da bochecha e colocá-lo muito rapidamente em um sensor. Quando você passa, tira os sapatos e percorre o scanner, eles também podem testar um vírus em particular. Se você estiver carregando o vírus, eles podem não deixar você entrar no avião. Eles podem não deixar você sair do avião.

AA: Isso adiciona um ângulo interessante à segurança do transporte. Lembro que você mencionou no livro que o resultado da SARS poderia ter sido bem diferente se ele entrasse no sistema de metrô, uma instância de uma área densa para humanos.

DQ: Isso mesmo. Precisamos começar a imaginar essas possibilidades e discuti-las, e decidir se [alguma medida] seria aceitável para nós ou não.

Quando você começa a discutir vírus assustadores, como o Ebola, as pessoas dizem que precisamos nos preocupar com o bioterrorismo. Bem, sim, e dinheiro está sendo gasto nisso. Mas gosto do comentário que ouvi de uma das minhas fontes especializadas. As pessoas falam sobre como vão disseminar esse vírus. Bem, pense na gripe aviária. Não precisamos nos preocupar com algum culto que o dissemine, porque os pássaros já o estão disseminando. O mundo da natureza e as coisas que nós humanos estamos fazendo - interrompendo os ecossistemas e depois viajando - esses fatores serão, de longe, a maior medida de nosso risco. Eu acho que o bioterrorismo consciente, a possibilidade de que essas coisas possam ser carregadas e liberadas, é uma preocupação marginal em relação às possibilidades naturais de liberação.

AA: Como pessoas preocupadas com nossa própria saúde e bem-estar, geralmente consideramos vírus e patógenos como essas coisas extremamente obscuras que, por algum motivo, estão nos incomodando. Como alguém com foco em ecologia e respeito por todas as formas de vida, você diria: "É claro que eles estão tentando nos colonizar. Essa é apenas a natureza deles. Você tem que olhar para isso sem preconceito humano.

DQ: Sim, absolutamente. Os vírus não são organismos malignos. Os vírus não são mais organismos malignos do que os leões, borboletas ou sapos. Eles estão apenas tentando sobreviver e replicar, de acordo com os princípios darwinianos, da mesma forma que todos os outros organismos vivos (se você considera os vírus vivos). Eles obedecem à evolução darwiniana; suas atividades são definidas pela seleção natural darwiniana. O que eles estão tentando fazer é transmitir seus genomas. Não há nada de sinistro nisso.

Como digo no livro, parasitismo e infecção são processos naturais, tanto quanto competição, predação e fotossíntese são processos naturais. A infecção de um organismo por um vírus não é mais antinatural do que o que um leão faz com um gnu ou uma zebra. Essas coisas nos chamam a atenção quando um novo vírus se espalha sobre os seres humanos. Isso é paralelo ao que acontece quando um leão ocasionalmente mata uma vaca e um pastor ocasional, porque foi privado de suas presas naturais e tudo o que está ao redor são vacas e pastores.

AA: Você defende que é a nossa ruptura e desintegração do ecossistema que geralmente permite que micróbios isolados ganhem vantagem e possivelmente causem surtos. Tradicionalmente, a prática dos profissionais médicos é responder às consequências de tais eventos. Esses profissionais devem ter influência ou estar envolvidos na prevenção da ocorrência desses surtos?

DQ: Sim. Médicos e profissionais de saúde pública devem estar muito envolvidos, e não apenas de volta aos hospitais. Você está vendo isso cada vez mais. Algumas das pessoas sobre as quais escrevo no livro têm formação médica e algumas têm graduação em saúde pública.

Há um novo profissional que mencionei no livro que tem essa sinergia de habilidades e treinamento. Eles podem começar com um diploma em medicina veterinária e, em seguida, adicionar um doutorado em ecologia ou talvez um mestrado em saúde pública. É alguém que pode estar lá fora, na floresta, nas aldeias, observando e ajudando a influenciar o que é feito para reduzir o risco de "spillovers" e conter "spillovers" quando eles ocorrem.

Acrescente a esses médicos humanos os virologistas. Eu acho que seria ótimo se mais pessoas com diplomas médicos e em virologia passassem para o trabalho de campo em transbordamentos zoonóticos. Esse tipo de treinamento é essencial para esse campo. Conheço alguns desses tipos de profissionais. Por exemplo, existe Karl Johnson. Ele provavelmente é o avô do trabalho de Ebola. Ele é meu amigo e provavelmente não gostaria que eu o chamasse assim, talvez "o pai do trabalho de Ebola". Ele foi treinado como médico e se considera um ecologista viral. Precisamos de mais Karl Johnsons; precisamos de mais pessoas com esse tipo de treinamento, com formação médica e compreensão da ecologia dos vírus, e como algo pode sair de um roedor na paisagem rural da Bolívia e causar febre hemorrágica nas pessoas.

AA: Alguns pacientes, crianças, adultos e os imunocomprometidos possuem animais de estimação exóticos. Um estudo publicado na revista Emerging Infectious Diseases (Grant e Olsen, 1999) demonstrou que os médicos não se sentem à vontade para discutir os papéis dos animais na transmissão de doenças zoonóticas com pacientes, e mesmo assim as pessoas não procuram seus veterinários para obter educação sobre saúde humana. O que você acha dessa divisão fundamental?

DQ: É por isso que a EcoHealth Alliance está no mercado, para preencher essa lacuna entre eles, em termos de pesquisa, mas também em termos de educação do público. É apenas uma organização, mas é uma organização com algumas pessoas muito boas nela. Vai se tornar cada vez mais importante.

Há também pessoas como Nathan Wolfe. Ele dirige o Global Viral, anteriormente conhecido como Global Viral Forecasting Initiative. Ele desenvolveu um método em que amostras de sangue colhidas simplesmente em papel de filtro e levadas para casa e secadas podem ser usadas para rastrear certos vírus usando PCR. Ele está coletando amostras na África Central e no Sudeste Asiático e em outros lugares de pessoas envolvidas em consumo de carne de animais selvagens. Ele está fazendo com que elas colham amostras de sangue da carne do mato, e ele também está recebendo amostras de sangue deles. Ele está lá fora, fazendo este diagnóstico conjunto. Existem novos vírus - ou existem vírus conhecidos, mas perigosos - que estão sendo transportados em animais selvagens mortos por carne de caça e esses vírus estão entrando nos caçadores, os consumidores de primeira linha. Essa é apenas uma das situações em que existe essa integração da medicina veterinária e humana.

AA: Eu imagino que animais de estimação exóticos também sejam uma preocupação nesse campo integrativo.

DQ: Sim, definitivamente. A febre de Lassa entrou nos Estados Unidos por meio do comércio de animais exóticos. Também é possível para outros vírus que podem ser transmitidos por animais exóticos e domésticos, até certo ponto. Por exemplo, existem várias doenças que podem ser transmitidas mesmo de cães e gatos para humanos.

AA: Você acha que algum tipo de comunicação precoce entre as duas profissões de educação veterinária e médica ajudaria futuros médicos a apreciar a emergência de doenças infecciosas?

DQ: Absolutamente. Eu acho que ensinar doenças infecciosas sem ensinar sobre doenças zoonóticas é ilógico. Eu acho que seria muito útil. É quase como tentar ensinar cálculo a alguém sem ter ensinado álgebra e geometria.

AA: Considerando a variedade de assuntos sobre os quais falamos, há algo que você gostaria de adicionar?

DQ: Eu acho que o que estamos falando é muito importante. A razão pela qual escrevi este livro é tentar fazer a conexão não apenas entre a ciência veterinária e a humana, mas também entre os profissionais científicos e médicos e o público em geral. Eu acho que é realmente importante que as pessoas entendam melhor um pouco da ciência, algumas dessas dinâmicas e princípios.

O que eu digo para você é: não tente aplicar seu conhecimento até ter algum. O que quero dizer com isso é investir um pouco de tempo e energia mental na leitura de meu livro ou em algum outro livro e realmente entender os princípios desse fenômeno e aprofundar um pouco mais nele. Não entregarei a você um cartão que diz: "Aqui estão duas ou três coisas que você pode fazer para salvar o mundo de doenças zoonóticas". É muito complicado, e é por isso que meu livro tem mais de 500 páginas.

Sou escritor de ciências. Este é um nicho ecológico muito importante, o nicho em que estamos: a tradução de ciências médicas complicadas e urgentes em formas consumíveis e absorvíveis pelo público em geral, sem ser simplificadas demais, sem ser sensacionalistas, sem serem imprecisas. Gostaria de mencionar isso como um lembrete para os profissionais médicos, a fim de incentivá-los a ter algum tempo e paciência para o próximo escritor de ciências que bater à sua porta.

AA: Essa foi a minha próxima pergunta. Médicos e cientistas geralmente têm muito pouco tempo livre para leitura de prazer, sem falar na literatura científica. Como eles poderiam se beneficiar da leitura do "Spillover"? Algumas preocupações que ouvi foram que existem muitos detalhes aqui que você e eu consideraríamos textura em uma história. Profissionais podem querer chegar aos resultados rapidamente.

DQ: O que eu tentei fazer em "Spillover" é incluir muitas informações científicas muito importantes e muito complicadas em um pacote que possa ser uma descoberta de prazer.  Tentei criar um livro interessante para pessoas que amam livros e que gostam de ler. Mas também oferece muita educação às pessoas sobre um assunto muito importante.

Por que um profissional médico ocupado deve ler este livro para aprender sobre doenças zoonóticas quando talvez ele ou ela possa ler um artigo de revisão de 100 páginas e obter as mesmas informações? Minha resposta é a seguinte: eles devem lê-lo porque este é um livro que pode ser uma ferramenta importante para eles. Ele ou ela pode descobrir que esse é um livro que eles gostariam de dar a seu cunhado, irmã, sobrinho, sobrinha que está pensando em frequentar a escola de veterinária. Espero ter criado uma ferramenta muito valiosa para levar essas informações a muitas pessoas que normalmente não seriam pacientes o suficiente ou interessadas o suficiente para consumir essas informações.

Eu diria que os profissionais científicos poderiam se beneficiar com a leitura deste livro, porque então eles sabem o que está lá fora, que pode ser uma ferramenta para eles tentarem explicar esse assunto a outros membros do público em geral.

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