A cura da Terra?

Há muitos anos atrás, comprei um livro escrito por um jornalista e professor da Universidade do Arizona, Alan Weisman, intitulado "O Mundo sem Nós". Este livro, lançado no Brasil em 2007, acabou virando uma minissérie de duas temporadas do History Channel em 2009, e alguns capítulos dublados ainda podem ser encontrados no youtube. Neste livro, Weisman reúne uma equipe de engenheiros, biólogos, climatologistas, geólogos e arqueólogos para dar respostas a uma só pergunta: Como ficaria a Terra, se a espécie humana desaparecesse repentinamente? A obra é uma versão estendida do artigo "Terra Sem Gente" (Earth Without People), escrito pelo mesmo autor e publicado na revista Discover em fevereiro de 2005.

As distopias futuristas que tantas vezes têm aparecido nas telas de Hollywood desde a década de 70, como em "A Última Esperança da Terra" (1971) e em Mad Max (1979), já não trazem nada de tão novo assim; só para entendermos o alcance disso, um dos primeiros livros a abordar essa questão, data de 1826, e foi escrito por Mary Shelley, a mesma genial criadora de Frankstein. O romance "O último homem", que ficou "enterrado" durantes muitas décadas sob as piores críticas de todas as obras da autora, só foi redescoberto a partir dos anos 60 do século XX, justamente quando as ficções científicas pós-apocalipticas passaram a ser revisitadas em meio a um modelo duvidoso de progresso adotado pela civilização humana, e que tornou autores como Philip Dick (outra hora falaremos sobre ele) os mestres da imaginação "pós-normalidade". Parece irônico, em um momento em que registramos quase 5 milhões de infectados no mundo por coronavírus, e 311 mil mortes, lembrar de uma obra de ficção escrita a 194 anos atrás, e que falava justamente da destruição da humanidade ao final do século XXI pela "praga" do tifo. Este livro de Mary Shelley, publicado originalmente em três volumes, tem ainda algumas surpreendentes similaridades com o momento atual, como por exemplo, a existência de uma seita religiosa fanática na França, liderada por um falso Messias, que diz a seus seguidores que se salvariam da doença, enquanto, na verdade, esconde de todos a gravidade da doença que acomete a todos. Carregada de uma certa amargura pelo fracasso da fé iluminista no progresso, a obra "O último homem" nos oferece um retrato interessante do pensamento crítico do século XIX acerca do nosso distanciamento em relação à essência da humanidade.

Mas eu quero voltar à obra de Alan Weisman, porque ela me trouxe algo absolutamente novo na forma de pensar as ficções: é a primeira vez que me deparei com uma obra sem protagonismo humano; aliás, talvez tenha sido a primeira vez que me deparei com uma obra tão interessante e sem seres humanos, pois mesmo naquelas histórias onde o protagonismo é assumido por outros seres, como no caso de "A Revolução dos Bichos" (1945), do escritor inglês George Orwell, os homens estão sempre presentes, seja como coadjuvantes, seja como referência de comportamento. Já em "O Mundo sem Nós", é exatamente o contrário; o "experimento mental" do autor, baseado em evidências científicas, tenta projetar o desenrolar da natureza sem nenhuma forma de interferência humana, material ou simbólica, e isso, efetivamente, foi inovador.

Duas coisas aparentemente paradoxais me chamam a atenção na ficção de Weisman: de um lado, a rapidez com que o mundo construído pelos humanos é capaz de se desorganizar diante da falta deles (as centrais automatizadas de energia são capazes de se manter em funcionamento por algumas horas sem seres humanos; na medida em que os combustíveis acabam elas vão se desligando e o colapso energético mundial já se instala. A maioria das construções, como o metrô de Nova Iorque, que dependem de bombas elétricas para drenar a água subterrânea, seriam inundadas em menos de 24 horas); em segundo lugar, a longa duração de algumas das marcas humanas na natureza terrestre, capazes de sobreviverem por milhares de anos ou, em aguns casos, mais do que a própria Terra, como no caso das ondas radiofônicas no espaço sideral. Os dezenove capítulos do livro são dedicados a explorar diferentes temas da vida moderna, sempre tendo como ponto de reflexão o que aconteceria com aquilo na ausência dos humanos. Para mim, o capítulo 2 deste livro, em especial, foi uma estrondosa descoberta, pois a forma como o autor descreve lentamente e com uma riqueza de detalhes a destruição natural, pela ação do clima e dos organismos vivos, de uma casa abandonada, é algo inesquecível. Não há dúvida de que a leitura de "O Mundo sem Nós" é algo tremendamente recomendável para quem gosta de usar a ficção para pensar sobre o mundo que construímos cotidianamente. Mas a postagem de hoje não é para falar de Alan Weisman, Mary Shelley, Philip Dick, George Orwell ou qualquer outro autor de ficção, é para falar da realidade que estamos vivendo em 2020 em diferentes cidades do planeta.

Jornais do mundo todo tem feito matérias sobre as impressionantes mudanças ocorridas na natureza a partir da redução da atividade humana provocada pela pandemia mundial. Atmosferas livres de poluição, águas de rios, mares e canais mais transparentes, cidades "invadidas" por animais silvestres que se aproveitam do "desaparecimento" dos humanos. Quando nos deparamos com estas cenas, e lembrando das ficções acima referidas, é difícil não pensar no poeta e dramaturgo inglês Oscar Wilde, que dizia que "a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida". 



Na foto acima, divulgada pelo "The Times", um grupo de Cabras da Caxemira passeia livremente pela cidade de Llandudno, no norte do País de Gales. As ruas desertas desta pequena cidade litorânea, causadas pelo isolamento social, atraíram o rebanho de cabras para a cidade, onde a alimentação dos jardins urbanos parece mais atrativa do que nos promontórios onde estes animais normalmente ficam. Imagens como essa correram o mundo, e as interpretações começaram a acontecer na mesma velocidade com que as fotos eram publicadas; só que há algo bem mais profundo, que interpretações rápidas parecem não perceber: o desequilíbrio na relação entre a sociedade e a natureza não está no "exílio" da natureza de nossas áreas urbanas, agora, supostamente, retornada diante do isolamento humano. A maior parte desta natureza que agora nos surpreende, manteve-se invisibilizada, dominada e em desequilíbrio em nossas cidades, enquanto desfrutávamos dos prazeres do desenvolvimento. Agora que estamos "mais lentos" e mais reclusos, temos o tempo e as condições para observar o impacto daquilo que fizemos. Vejamos, por exemplo, um caso na Tailândia:


Nesta outra foto divulgada pelo jornal britânico The Sun, milhares de macacos da espécie Macaca fascicularis invadem as ruas nas proximidades de um templo da cidade de Lopburi, na Tailândia, em busca de alimentos. Ainda que para o hinduísmo, religião prevalente na região, esses animais sejam a representação do Deus Hanuman, a forte presença dos macacos nas ruas sempre esteve muito mais ligado ao turismo do que à religião (39 milhões de turistas visitaram a Tailândia em 2019), como pode ser verificado na imagem abaixo. Todos os anos,uma festa por ocasião do Festival dos Macacos é oferecida pelos turistas aos primatas, com pratos elaborados com frutas, verduras e guloseimas, alterando completamente o metabolismo natural da espécie.   Na falta de turistas, os primatas lutam para não morrer de fome. Deslocados de seus hábitats naturais, os macacos se tornam mais dependentes, menos ativos, mais agressivos com os humanos e menos saudáveis.




O mesmo podemos dizer sobre a "invasão" de cervos (Cervus nippon Temminck) noticiada na cidade de Nara, no Japão, como pode ser observado na imagem abaixo. O que escapa à interpretação mais ligeira, é que a cidade de Nara, um dos destinos turísticos mais populares do Japão, há muito tempo é lar de milhares de cervos como estes, especialmente no entorno do Nara Park, onde representam o grande atrativo para turistas em busca de experiências exóticas.


Localmente conhecidos como sika, estes cervos são um ícone cultural do Extremo Oriente, tendo sido introduzidos em países do mundo todo como objeto de caça. Protegidos por motivos religiosos, a população de servos cresceu enormemente e passou a ficar na dependência dos turistas que anualmente visitam o parque e os templos religiosos da cidade de Nara (foto abaixo). Portanto, o isolamento social dos japoneses apenas ampliou o raio de ação destes animais dentro da cidade, tendo em vista o desaparecimento da alimentação fácil e desequilibrada fornecida por turistas.



Na Europa também tem sido amplamente noticiado pela imprensa o avanço de javalis (Sus scrofa)  sobre áreas urbanas do norte da Espanha e da Sardenha, em função da redução do trânsito de carros e de pessoas nas cidades, como no caso da foto abaixo que foi recentemente publicada por um jornal espanhol.


No entanto, pouco há para se comemorar neste caso, uma vez que o avanço de javalis sobre áreas urbanas já tem sido noticiado em diferentes países do mundo e bem antes do coronavírus, como testemunha a foto abaixo, tirada em Barcelona em março de 2019. Uma pesquisa realizada na Universidade Autônoma de Barcelona já havia registrado a presença de 3.148 javalis no entorno das áreas verdes da cidade entre os anos de 2010 e 2014, especialmente nos arredores do Parque Natural Collserola. Entre os meses de março e novembro, quando a comida se torna mais escassa no ambiente natural do Parque, os javalis tradicionalmente invadem o espaço urbano à procura de alimentos secos.  Na maior parte da vezes, os animais são avistados em locais onde moradores depositam alimentos para gatos de rua.



Não há nenhuma dúvida de que o nosso "recolhimento" atual e o maior tempo disponível para observação nos permite identificar com muito mais ênfase a presença e/ou o retorno da natureza em meio às nossas áreas urbanas, e há sim muito o que se comemorar em alguns casos, como o aumento da transparência da água em Veneza com a redução do fluxo de barcos, ou a belíssima visão do Himalaia a partir de uma atmosfera mais limpa em Punjab, na Índia. No entanto, há algo para além disso: precisamos perceber que muitas destas "invasões" não passam de ampliações de um desequilíbrio há muito já alimentado pela sociedade humana. Aproximar-se da natureza significa, acima de tudo, respeitar e aprender com a natureza, e não encarcerar e alimentar animais selvagens para a simples fruição humana, seja por motivos religiosos ou, ainda pior, por motivos turísticos. Esta proximidade nociva com a natureza, ao contrário de representar uma conexão dos seres humanos com o restante da vida terrestre, é a mais simples e deplorável demonstração do egocentrismo humano que se coloca acima de qualquer outro ser terrestre.

Desde há muito tempo, os turistas que visitam o Parque Nacional do Iguaçú, no Paraná, se acostumaram à presença constante dos quatis (Nasua nasua), e isso, diante da extrema desnaturação da vida urbana, tende a levar os visitantes a interpretar como uma proximidade positiva, que chega mesmo a impulsionar o turismo do Parque com a venda de souvenirs. Fazemos isso sem refletir sobre toda a modificação metabólica que significa para estes animais alimentarem-se de fast-food roubado dos turistas ou coletado nas latas de lixo. Isso para não falarmos dos riscos sanitários existentes na proximidade entre humanos e espécies silvestres.



Pois bem, alguns chegam a arriscar dizer que o aumento da presença de animais nas áreas urbanas durante a pandemia, significa um sintoma da "cura da Terra", após tantos séculos da violenta agressão humana. Particularmente eu penso que estamos muito longe da cura da Terra, e acho que os avistamentos de fauna em cidades mais silenciosas do mundo todo, ao invés de nos lembrarem apenas que a natureza resiste, deveriam nos lembrar dos desequilíbrios que provocamos e que continuamos a provocar mundo a fora. A pandemia representa um breve e passageiro instante, mas se não formos capazes de aprender com isso e, acima de tudo, compreender que respeito é muito mais do que proximidade, talvez estejamos muito mais próximos da ficção de Allan Weisman, do que da efetiva cura da Terra. 

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